O PROJETO QUATRO VARAS E A TERAPIA COMUNITÁRIA:
POLÍTICA PÚBLICA AFIRMATIVA DA DIFERENÇA E DOS
VALORES HUMANOS
Manuela Sobral Bentes de Melo1
Francinete Alves de Oliveira Giffoni2
Gislene Farias de Oliveira3
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(1) Médica pelo Centro Universitário Christus, UNICHRISTUS, Brasil, 2016. manuelasbmelo@gmail.com.
(2) Médica Psiquiatra. Colaboradora do Projeto Quatro Varas da Universidade Federal do Ceará – UFC. franvida2015@gmail.com.
(3) Doutora em Psicologia social. Professora da Universidade Federal do cariri – UFCA. gislenefarias@gmail.com.
Introdução
Em Fortaleza-CE, pode-se conhecer no lado sul da cidade, o Projeto Quatro Varas. O acesso se dá pela Avenida Presidente Castelo Branco, conhecida como “Avenida Leste-Oeste”. Esta nasce na Praia de Iracema, área bastante explorada turisticamente por sua beleza natural que atrai visitantes o ano inteiro. Logo no início da avenida há um majestoso hotel, ladeado à esquerda por um jardim bem cuidado, cercado de pinheiros e, à direita, por uma sofisticada marina onde aportam numerosos iates.
Ao longo da orla, o azul-esverdeado das ondas é contornado por arabescos de uma branca espuma que se desmancha na areia, acompanhando as mudanças na arquitetura urbana que vai assumindo características cada vez mais humildes quanto mais se aproxima do local onde fica o Projeto Quatro Varas - o bairro do Pirambu - cujo aspecto de abandono denuncia os parcos investimentos públicos nesta porção urbana de periferia.
O bairro começa no “pólo de lazer”, que, na verdade, é uma praça desértica, com arbustos ressecados e onde se vê alguns brinquedos quebrados, feitos de ferro e madeira, que resistiram ao tempo. Com exceção da Escola de Aprendizes Marinheiros, sempre impecável, com seus altos muros bem caiados, e de algumas residências que ao longo do tempo foram reformadas, predominam na maior parte do Pirambu, a precariedade e a monotonia das construções, responsáveis pelo transitar de pessoas que preferem o ar livre das calçadas ao espaço restrito de suas casas. Quem procura o Projeto Quatro Varas em geral encontra no trajeto homens bêbados, meninos de rua de calções desbotados, sem camisa, jogando bola de gude ou contando moedas que recebem no sinal. Trafega-se em ruas estreitas, construídas por cima de antigas dunas, delineando ladeiras tão íngremes que parecem parte de uma montanha-russa que termina abruptamente em um beco sem saída, de onde se avista o mar e a entrada do Projeto Quatro Varas. O portão alto de ferro reciclado deixa entrever a palhoça de cipó trançado e coberta de palha, onde ocorrem as sessões da terapia comunitária.
A brisa do mar umidifica o ar que se respira nesse espaço povoado por uma gente cujos destinos, falas, silêncios e mistérios cativam quem de lá se aproxima. Logo ao entrar pelo portão de ferro desbotado pela maresia, pode-se sentir a atmosfera agradável do ambiente, que se assemelha a um sítio, com cajueiros sombreando banquinhos de alvenaria onde as pessoas se demoram em longas conversas. Os lotes de terra onde se assenta o Projeto Quatro Varas compõem a área de 7.399,36m², e foram adquiridos um a um, conforme foram surgindo as necessidades mais imediatas, por meio de doações de visitantes e seguidores da igreja católica. Este talvez tenha sido o motivo pelo qual as edificações não seguem um padrão arquitetônico único, nem têm uma perfeita simetria. O desenho meio aleatório e a rusticidade que as caracterizam, por sua vez, podem ser atribuídos ao modo informal como foram construídas graças ao voluntarismo dos primeiros membros da comunidade.
As fachadas decoradas com motivos indígenas mostram a influência da cultura ancestral presente nas redes de tucum e peças de cerâmica, distribuídas ao acaso. Esse ambiente favorece o desenvolvimento de diversas atividades que forma uma rede de apoio psicossocial com intervenções que se complementam. A terapia comunitária é a atividade inicial geradora e organizadora de todas as outras, que foram surgindo, a partir das demandas suscitadas pelos primeiros participantes. A partir dela, a comunidade veio elaborando e sistematizando cada uma das modalidades terapêuticas e outras atividades que compartilham espaço do Projeto Quatro Varas. A expansão da terapia e a multiplicação de atividades que com ela se relacionam nesse espaço deve-se a dois aspectos principais: primeiro, sua natureza holística, que demanda a agregação de diversos outros métodos complementares de cura e, segundo, o fato de ser uma experiência afirmativa de identidades, considerando as diferenças, construindo a partir da diversidade uma teia de interações que vêm possibilitando sua sustentabilidade.
As sessões da terapia, proporcionam a escuta e o diálogo entre pessoas de diferentes classes sociais, origens étnico-raciais, credos, etc que, ao falarem de seus problemas, compartilham elementos de sua cultura. Com o tempo, a frequência à terapia Comunitária e ao Projeto Quatro Varas foi se ampliando com o desenvolvimento de outras atividades incluindo massoterapia, atendimento por rezadeiras, banhos de ervas e outras práticas complementares e integrativas. Essas modalidades terapêuticas permitem uma maior abrangência na abordagem da diversidade cultural e da multidimensionalidade humana. Daí pode-se dizer que o terapeuta comunitário deve ser um “poliglota da cultura” e o ritual da terapia deve, por sua vez, incluir uma diversidade de códigos culturais: lingüístico, corporal, musical, espiritual e outros.
A Terapia Comunitária
A Terapia constitui uma experiência transcultural, podendo modificar-se de acordo com o contexto sociocultural onde for desenvolvida. Esse fato pode ser evidenciado observando a mudança nos estilos de música, nas histórias que são contadas, nos mitos e crenças que aparecem nas sessões realizadas nas diversas regiões do Brasil. A terapia é um espaço onde se compreende que diferentes valores e visão de mundo determinam os modos como os seres humanos entendem as causas das doenças e que opções de cura que buscam alcançar. A partir de suas diferenças, cada sociedade organiza os papéis e práticas que envolvem o binômio saúde-doença, desenvolvendo de formas diversificadas em contextos específicos (BARRETO, 2008).
No âmbito do Projeto Quatro Varas, a Terapia Comunitária tem forte influência indígena, deste a concepção do espaço terapêutico constituído por um palhoça de forma circular, semelhante a uma “oca” com dezesseis metros de diâmetro. Está localizada no centro do terreno, cercada por outras construções que servem para a realização de práticas alternativas e complementares de cura, além de atividades artísticas e culturais. O ritual acontece nesse ambiente todas as quintas-feiras, impreterivelmente, às quatorze horas. Nestes dias, a sede do Projeto fica muito mais movimentada: homens, mulheres, crianças da comunidade e visitantes descem a ladeira em carros, motocicletas ou até mesmo a pé, para participar das sessões que duram uma média de duas horas e reúnem um número que varia em média de trinta a duzentos participantes. Cerca de cinqüenta a sessenta destas pessoas costumam vir pela manhã em busca de outros tratamentos individuais como massoterapia e de grupo como a terapia da auto-estima que envolve vivências e meditação. Tem por base o conhecimento da tradição oriental e na teoria bioenergética. É uma experiência semanal aberta a qualquer pessoa que esteja enfrentando uma situação de crise ou deseja iniciar um processo de auto-conhecimento. Cada participante é orientado a participar de, no mínimo 10 a 12 sessões seguidas, embora possa freqüentar de forma alternada, de acordo com a demanda e com suas possibilidades.
Esta atividade tem por objetivo aprofundar os resultados da terapia comunitária, sendo realizada no mesmo espaço da palhoça às quintas-feiras, entre 8 e 10 horas. Após a sessão, em geral as pessoas buscam a massoterapia ou interagem naturalmente em conversas e passeios pelo ambiente arborizado do Projeto Quatro Varas. Algumas retornam a suas casas e outras ali permanecem para almoçar no restaurante do Projeto, descansando, depois, nas redes de tucum, enquanto esperam para participar da terapia comunitária que começa às duas da tarde.
A terapia comunitária é um espaço aberto para receber pessoas de todas as idades, inclusive crianças, que depois podem se engajar em outras atividades do Projeto, passando a fazer parte de uma teia de vínculos, viva e natural. Desde sua criação em 1987, as atividades do Projeto Quatro Varas foram se ampliando e se diversificando, o que começou a atrair lideranças comunitárias de outros bairros de Fortaleza. Além disso, chegavam pessoas pertencentes às mais diversas tendências políticas e diferentes credos: católicos, espíritas, protestantes e curandeiros, que passaram também a conviver com intelectuais, pesquisadores e profissionais de diversas áreas, interessados na proposta terapêutica do Projeto Quatro Varas e, principalmente, a Terapia Comunitária. Muitos destes, ao se aproximar, se voluntariavam para realização de trabalhos sociais direcionados ao combate à violência, à prevenção do alcoolismo e do uso de drogas.
Essas aproximações fizeram da terapia uma experiência afirmativa das diferenças numa perspectiva inclusiva constituindo-se num espaço de todos que ali podem construir conhecimento de acordo com suas capacidades, expressando suas idéias de forma livre e desenvolvendo sua autonomia enquanto cidadãos. A Terapia Comunitária é, portanto uma verdadeira escola de vida porque ali ocorre um processo educativo, inserindo-se ela mesma numa ampla teia de relações envolvendo instituições como universidades, igrejas, grupos de Alcoólicos Anônimos(A. A.), Sindicatos, ONGs, dentre outras.
E, nesse processo, a Terapia Comunitária e o Projeto Quatro Varas como um todo passaram a despertar não só a atenção das classes populares que desejavam utilizar os recursos terapêuticos, como também a de estudantes e pesquisadores de universidades brasileiras e estrangeiras como, por exemplo, o grupo de Residentes de Psiquiatria da Universidade de Laval – Quebec, estudantes da Universidade Lyon II na França, e outros da Alemanha e da Suíça. Foi necessário edificar uma Casa de Acolhimento, um espaço que permitisse abrigar visitantes. Muitos destes, interessados em conhecer o método passaram a se hospedar frequentemente e também aumentar o tempo de permanência realizando pesquisas ou projetos sobre a terapia comunitária, o Projeto e a Comunidade Quatro Varas. Apesar da informalidade em que se originou, o o Projeto veio se estruturando gradativamente, resultado do zelo das pessoas que ali desenvolvem atividades, na maioria das vezes voluntariamente, como se cada uma delas trouxesse seu próprio significado, desejo de pertencimento e a convicção de que aquele patrimônio também é seu.
A sessão da Terapia
Tempos/Fases da Terapia segundo Barreto (2008):
- Acolhimento
Dinâmica de tonalidade lúdica, para animar e descontrair o grupo. Um co-terapeuta, responsável por esse momento inicial da terapia comunica quem será o terapeuta que dirigirá a sessão e esta começa com a palavra do terapeuta comunitário cumprimentando o grupo. Algumas das regras da terapia como falar apenas de si e não julgar, são anunciadas . A partir desse momento as pessoas já podem falar o que lhes causa desconforto, o que o trouxe à terapia.
- Escolha do tema
O terapeuta abre o espaço aos participantes indagando quem gostaria de falar. Algumas pessoas em geral se manifestam. Após dizer seu nome explicitam com poucas palavras suas queixas, o terapeuta anota e passa a palavra ao próximo interessado em falar. Um pessoa apenas será escolhida por votos do grupo para ser trabalhada naquela sessão.
- Identificação do grupo com o problema apresentado
Um momento de reflexão de alguns minutos. O terapeuta pede que as pessoas se manifestem comentando qual dentre as situações trazidas pelas que se colocaram para serem trabalhadas mais lhe tocou e o porquê. Ao explicar os motivos pelos quais votariam nesse caso e não naquele, as pessoas têm oportunidade de refletir, a examinar pontos de identificação ou diferença com o caso proposto e se direcionar para escolher o tema que mais lhe interessa, e será aquele no qual vai votar.
- Votação
Resumo breve de cada caso apresentado, para auxiliar as pessoas a elegerem o caso que mais lhe toca ou interessa. Quando todos tiveram oportunidade de ser votados, o terapeuta agradece àqueles que manifestaram seus problemas no grupo.
- Contextualização
A pessoa que foi mais votada tem alguns minutos para explicar melhor os detalhes de seu sofrimento. As pessoas do grupo fazem perguntas para esclarecimento do caso como o contexto em que surgiram os sintomas, a vida atual e o passado da pessoa. Esse momento é destinado apenas à busca de informações sobre o problema. O terapeuta lembra que se há grandes segredos a pessoa não deve revelar. Só deve falar do que julgar pertinente para colocar no grupo.
- Problematização/Partilha
A fase mais profunda e rica de aprendizagem de experiência. A dor é partilhada pelos membros do grupo e também as estratégias de superação. A pergunta lançada ao grupo pelo terapeuta é: “Quem já viveu uma experiência semelhante e o que fez para superar?”
7.Conclusão
Corresponde à fase da terapia na qual todos devem permanecer de pé, abraçados, formando um grande círculo que balança de um lado para o outro, lentamente. Quem assim o desejar pode compartilhar as impressões sobre a sessão de terapia, o que aprendeu com a história que foi trabalhada. Qualquer participante pode manifestar-se a respeito daquilo que mais lhe tocou, sobre o que aprendeu, que exemplos pode levar pra aplicar em sua vida.
Em geral, o terapeuta procura manter o foco de sua abordagem na dor existencial, no sofrimento humano, nos aspectos comuns a qualquer indivíduo e que podem, portanto ser compartilhados por todos. Durante a sessão, à medida que as pessoas vão colocando seus problemas, ele vai anotando o nome e as queixas das pessoas, organizando a votação. É permitido que o grupo coloque até um número de oito a dez situações-problema para que daí uma seja escolhida para ser trabalhada.
Normalmente, entre os participantes, aqueles que desejam ser escolhidos para trabalhar algum problema ou situação falam brevemente a respeito de sua demanda. O terapeuta faz um breve resumo de cada caso, perguntando ao grupo, em qual deles gostaria de votar. Mas, antes dessa votação há um momento de reflexão em que se pede às pessoas do grupo para comentarem qual a situação que acharam mais tocante e dizer por que votariam nela. Qual a necessidade desse procedimento? Faz-se isso para instigar os membros do grupo a também colocarem suas motivações. O porquê de votar neste ou naquele caso, mostra algo sobre quem está votando, o porquê de sua escolha.
O fato de uma pessoa escolher tal história, e não outra está relacionado ao processo de identificação e pode ser explicado pela teoria do inconsciente coletivo de Jung, segundo a qual os seres humanos guardam arquétipos, que são estruturas psíquicas compartilhadas coletivamente. Por fazer parte desse inconsciente, é como se tivesse algo tocante a cada uma das pessoas e estas podem se sentir contempladas em algum aspecto de sua vida.
Desta forma, de acordo com os relatos trazidos à terapia, cada participante tem a possibilidade de fazer uma viagem para dentro de si e, quem sabe, encontrar uma ressonância daquele assunto em sua história de vida. Emoções e lembranças guardadas no inconsciente, de forma que podem, de alguma forma, ser elaboradas. E assim, conforme sua sensibilidade e capacidade de empatia, desejará ou não que o tema seja trabalhado.
É por este motivo que o terapeuta pede às pessoas que explicitem, justifiquem porque escolheram aquele caso e não outro. Em seguida, o terapeuta procede ao momento do voto em que cada pessoa eleva o branco pra escolher o caso a ser trabalhado. Neste momento, deve-se somar quantas pessoas votaram. Escolhe-se dessa forma porque ao se manifestarem interessados em que tal tema seja escolhido os participantes terão maior motivação em prestar atenção e participar da terapia.
O tema mais votado será, provavelmente, aquele que mais se aproxima do inconsciente coletivo do grupo e que, portanto permitirá a um maior número de pessoas, os insights, as elaborações e a trocas de experiências. Após a soma dos votos, tendo-se escolhido o caso a ser trabalhado, o terapeuta agradece a todos que manifestaram seus problemas, explicando àqueles que não foram eleitos naquele dia, que podem, em outra terapia, voltar a colocar seu problema em votação e serem escolhidos. Também se coloca à disposição para conversar com estas pessoas, após o término da terapia, para auxiliar de alguma forma e dar um encaminhamento.
Em diversos momentos, o grupo canta músicas que, apesar de muito simples, tem um forte apelo afetivo, motivo pelo qual aparecem em quase todas as sessões. A maioria dos participantes já conhece, pois se costuma utilizar algumas músicas como recurso porque, além das palavras contidas na letra encorajarem o ato de compartilhar sentimentos com o grupo, o tom suave da melodia, acompanhada ao violão, cria um clima de emoção favorável às trocas afetivas, à criação de vínculos:
O som do violão e o calor humano que se desprende quando os participantes estão com as mãos unidas, muitas vezes trazem ao presente um choro incontido que contagia a todos.
Na terapia, geralmente se evita dinâmicas em que uns se sobreponham aos outros. As pessoas que freqüentam há mais tempo aprendem a ceder o espaço coletivo a quem mais necessitar. Por diversas vezes vi pessoas que traziam sofrimentos que esperavam coloCar na terapia, renunciarem sua vez, em prol de um outro participante.
O efeito simbólico da Terapia
A Terapia é também constituída de símbolos, elementos transmissores da cultura. A composição do ritual com música, poesia, orações, funciona como fator de socialização, na medida em que incorpora os significados socialmente construídos transmitindo-os historicamente. Constituindo, portanto, um sistema simbólico, a terapia permite que traços culturais, conhecimentos socialmente construídos atravessem o tempo, unindo as pessoas e se propagando pelas gerações. Desta forma, crenças diversas coexistem e convivem, tornando-se apreensíveis pelas outras pessoas como algo real que se incorpora ao seu próprio sistema simbólico. Há portanto, uma integração entre o caráter social da terapia enquanto experiência agregadora, afirmativa das diferenças individuais e sua eficácia enquanto recurso terapêutico de alcance psico-fisiológico. O resultado positivo dessas práticas seria resultante da reativação e ressignificação de conteúdos socialmente construídos e armazenados no psiquismo do sujeito. Com relação à terapia, em particular pode-se observar que ocorre uma mobilização de processos inconscientes e recursos ligados ao processo saúde-doença, que emanam da experiência cultural.
Crenças diferentes são compartilhadas no grupo. Os símbolos culturais trazidos em cada sessão servem como fatores ordenadores da experiência, na medida em atraem e focalizam a atenção de todos os participantes, modulam a relação entre estes e canalizam a experiência sob forma de um diálogo possível num contexto de diferenças. Isto torna os símbolos polissêmicos e seus significados, perenes, uma vez que perpassarão o tempo na memória das pessoas. Assim, na terapia, o sujeito reconstrói seu universo cultural e cognitivo ampliando as possibilidades de superação das divergências e preconceitos negativamente concebidos. Cada pessoa pode sentir-se identificada e valorizada. A sensação de que não está sozinha, de que encontrou outras pessoas que compartilham e compreendem suas referências culturais, confirma sua identidade, construindo resiliências.
Utilizando o modelo junguiano pode-se dizer que os elos do inconsciente coletivo fazem com que o sujeito se perceba como pertencente de alguma forma àquele mundo. E, seja qual for a teoria que se utilize para explicar o que acontece quanto à sensação de pertencimento social e cultural, a realidade é que é algo fundamental para o bem-estar do ser humano e sua existência enquanto ser biopsicossocial. Por isso é fundamental que a pessoa se sinta à vontade para compartilhar os aspectos significativos de sua vida.
O ritual da terapia se dá em um contexto onde se estimula o partilhar da dor e das experiências individuais. Existe um clima propício para isso. As regras de que não se deve julgar ou interpretar são por todos conhecidas. A resposta ética dos participantes quando alguém deseja compartilhar é algo conhecido que se percebe ao frequentar assiduamente a terapia. O fato de demonstrar os sentimentos é sempre conotado positivamente. Até se agradece a quem se dispõe a colocar na roda terapêutica o motivo que lhe tira o sono, o que está preocupando.
Então, a partir desses parâmetros as pessoas são encorajadas a compartilhar. Porém, a decisão de tornar pública ou não a sua dor é de cada um. A cultura transmitida a cada sessão é que falar é mais saudável que guardar as dores. Por esse prisma, pode-se entender que, aquele que não fala que sente, poderá desenvolver algum tipo de sintoma. E a comunicação não se resume ao ato de falar. Outras manifestações que também aparecem na terapia (o choro, os gestos, expressões faciais, posturas com o corpo) adquirem significado a partir do contexto e do momento no qual aparecem.
Gradativamente, a sensação de pertencer ao grupo e de saber como tudo funciona no ritual, motiva as pessoas a falarem, a expressar de alguma forma sua dor, suas crenças e seus valores. Cantar junto com o grupo, por exemplo, é uma forma de se vincular a ele e assim permitir que as pessoas lhe ofereçam apoio. O vínculo grupal se estabelece de tal forma que, até quem não sabia a letra de uma música, ou o tom, faz a tentativa acompanhar, acrescentando sua parcela de contribuição afetiva, dando suporte e acolhimento. Desta forma, faz-se o elo indispensável à cura.
Alguns minutos após é rotina a apresentação do grupo de teatro das crianças do Projeto Quatro Varas, com temas pertinentes de alguma forma ao que é trabalhado nas sessões de terapia.
Avaliação
Ao final de cada sessão, o co-terapeuta em geral aplica questionários78 de avaliação aos participantes que apresentaram seus problemas com objetivo de estudo sobre a qualidade dos vínculos, auto-estima e rede de apoio social.
Considerações finais
Nesse manuscrito procuramos mostrar que, além de método de cura, a terapia constitui uma experiência de aprendizagem, que permite a ressignificação do sofrimento pela valorização do saber construído no cotidiano. A Terapia comunitária deixou de ser uma experiência marginal e anônima por ter começado numa favela, para ser entendida atualmente como uma abordagem complexa e eficaz, na qual dialogam e se confrontam o conhecimento popular e os saberes da medicina oficial.
Referências
BARRETO, A.P. Terapia comunitária: passo a passo. 3. ed. revisada e ampliada.Fortaleza: Gráfica LCR, 2008
Revista SAÚDE COLETIVA: Coletânea. N4, p.33-44. 2017. ISSN: 1982-1441.